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Quarta-feira, 1 de Maio de 2019

VIOLÊNCIA DOMÉSICA

 

VIOLÊNCIA DOMÉSICA

A minha tia, um dia destes, em jeito de confidencia - há memórias que se segredam, podem apunhalar mentes mais ortodoxas - dizia sobre a violência doméstica, discurso tão em voga nos tempos de hoje ainda que velho como o tempo, dizia eu, a minha tia afirmava, uma treta essa da violência doméstica.

Perante o meu olhar incrédulo, nada de Alzheimer, minha linda, apenas coragem de assumir uma realidade que não se compadece com o social correto. À frente. Era eu quase recém-casada, apenas um pimpolho me ocupava o colo na época, discutia com o meu companheiro, o teu tio, nem lembro mais sobre, quando, “vai para a puta que te pariu”. Logo uma mão pesada estalou no meu rosto como uma seta envenenada. Sim, envenenada pois fiquei azeda que nem fel, e foi só esperar que ele levantasse ferro para o trabalho; armadilhada de dois sacos e com o puto escarrapachado na ilharga, abalei porta fora.

Estranhas, não admira, sempre fomos, eu e o teu tio um exemplo de casal. Talvez até o teu exemplo. Mas continuemos que de bons exemplos está o mundo cheio e mal não faz ao dito cujo. O coitado, ainda que agressor físico, eu porém havia provocado a agressão, apenas hoje, passados tantos anos, virada para os meus pensamentos, dei comigo a arcar com tal culpabilidade. Ui, abres esses olhos de espanto mudo; é verdade, sinto-me culpada. Mas ainda não acabou aqui o fenómeno da violência doméstica no meu doce lar que tanto admiravas.  Enfim, com o teu primo escarrapachado na ilharga, mais dois sacos, chamei um táxi e abalei para a casa de uma amiga.

Com a raiva a sair pelos cantos da boca em forma de espuma, recontava à Berta o estalão no rosto, omitindo o “vai para a puta que te pariu”. Não voltas para ele, ficas aqui até arranjares emprego. Mas dizer e fazer vai a altura dos Himalaias ou mais. A noite aproximava-se sorrateira e ela, mais sorrateira do que o tempo, liga para o teu tio, está aqui, coitada.

Sem emprego, e sem qualquer hipótese de o arranjar assim de pé para a mão, emprego foi sempre difícil de conseguir, exceção para operária ou criada de servir, vê se entendes, a tua tia educada com os pergaminhos da tua avó, nem pensar.

A minha tia pareceu sorrir enquanto se recostava nas almofadas. Estás a dormir, quis saber. Minha sobrinha linda, não durmo, estou velha, mas as memórias mantêm este corpo seco como vide desperto, e ainda com vontade de dar umas gargalhadas. Dito isto desatou a rir de tal forma que fiquei preocupada ainda que contagiada, pois logo a acompanhei na hilaridade.

Então contou. Outra vez, o teu prezado e querido tio zangado com algo que lhe disse, que lembrança não tenho de tal, ergueu a mão num gesto de quem vai passar da ideia ao ato. Veloz, como um felino a quem se lhe calce a cauda, ergo o banco onde estava sentada e, “atreve-te!” Ai, deixa-me rir, filha. O certo é que nunca mais o teu tio tão pacato, e é, melhor, foi, descanse em paz, acredita, se atreveu ao dito gesto da mão erguida. Nem sequer em pensamento, presumo.

Mas tia, a violência doméstica é um flagelo mundial, até aqui no nosso país, gente de brandos costumes, dizem, tanto homicídio de mulher alguma vez se verificou. Já viste, quantas mulheres assassinadas, quase sempre pelos companheiros ou ex-companheiros, por dá cá aquela palha, ciúmes, dor de corno, vingança, eu sei lá. E até as crianças são levadas na enxurrada da loucura homicida. Não dá para entender, tia, não consigo...

Minha linda, a sociedade está a enlouquecer, aqui como por aí fora, até à Patagónia. As autoridades, numa boa parte dos casos, fazem vista grossa, são na sua maioria machos, os gajos, percebes?, depois a impunidade é o que se sabe, também na sua maioria os juízos são machos carregados de testosterona. Unicamente uma questão de educação. Desde o berço que as criancinhas, machos e fêmeas, deveriam interiorizar o respeito mútuo e o que ele implica.

Fez-se silêncio, apenas cortado por um ligeiro assobiar. Mais uma vez a tia mergulhava no sono, nos sonhos, como ela afiançava, já que eles, os sonhos, eram uma espécie de realidade onírica venturosa. Sabes, diz tão de repente que me assustou, se as mulheres fossem todas mais fortes fisicamente que os homens, ias ver quem matava quem. Os filhos da mãe contam com a fragilidade muscular das fêmeas, porque doutra forma pensariam duas vezes. Claro, vai para a puta que te pariu é motivo para tirar do sério qualquer macho que se preze. Mas matar, matar mesmo, ainda que se suicidar de seguida, anda tudo louco, o mundo gira ao contrário. Depois, querida sobrinha, a mulher, com toda a sua sensibilidade, vive confinada à vergonha familiar e social, mais a proteção da rapaziada, e acaba por se deixar amesquinhar, e inibe-se de se manifestar, olha, como aquela de erguer o banco e, “atreve-te!”

 

Novamente a tia semicerrou os olhos e pareceu levitar num sono de passarinho. Afaguei-lhe levemente o rosto e como se nada fosse retomou o fio à conversa.

Mas devo-te uma explicação, sendo certo que a violência doméstica não é fenómeno dos tempos modernos, noutros tempos até era bem vista, ou pelo menos tolerada, estás a ver, entre marido e mulher ninguém meta a colher; e a virilidade masculina atingia os píncaros da notabilidade social, homem que é homem é macho, e manda, fazes, ou ...Olha, Gil Vicente na Farsa de Inês Pereira, o cabrão do marido, desculpa lá a exaltação da titia, ameaçava dar-lhe pancada só por Inês cantar!

Apenas a sociedade evoluiu, e o que era deixou de o ser. pois agora esta de um tal dum juiz vir  justificar a violência doméstica por isto e por aquilo, tira-me cá do sério; essa da “vai para a puta que pariu” virou eufemismo - é só ouvir os finos vernáculos usado pela juventude de hoje, por dá cá aquela palha.

Correndo o risco de ser acusada de radical, eu cá resolvia a questão, à primeira suspeita de violência doméstica, cortava-lhes o coiso...E a besta do juiz era o primeiro a quem fazia a experiencia, até para verificar o efeito do objeto cortante.

Esta minha tia...

 

Bernardete Costa

 

 

publicado por Bernardete Costa às 20:14

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