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Quarta-feira, 2 de Janeiro de 2019

TOMAR CAFÉ... ANTES QUE SEJA TARDE

 

TOMAR CAFÉ... ANTES QUE SEJA TARDE

Eu sou a Maria, a mesma Maria, mas uma Maria doutros tempos, já vais entender a razão. Também não é de difícil compreensão, todas as marias e maneis são os mesmos, apenas com tempo às costas e as respetivas alegrias, dores, paixões e desilusões que o dito se encarrega de nos dependurar aos ombros. Sim, sou a Maria, nem foi preciso dizer-to, tu reconheceste-me. “A garota de 14 anos, custa a crer”, disseste: rosto redondo, tez morena, como hoje esta mesma Maria, apenas a pele não se suspendia dos ossos, nem os cabelos são mais negros, são cabelos de avó, e o rosto angulou, murchou como flor há muito na jarra. Mas tu vieste ter comigo através do facebook, mas podia ser através do twitter, apenas para referir estas redes sociais, que outras mais pululam pela virtualidade, não adianta esforçar o pensamento, no escaninho da minha memória refugia-se já tanta informação - o certo é que eu assino contas nestas redes sociais por malandrice e por atrevimento! Desta Maria não tens recordações; e eu sei de ti, Rodrigo, porque me escreves mensagens, que caem todas no meu correio eletrónico, a entupir os canais de servidor, por isso eu soube de ti, repito, eu que nunca antes soubera de ti.

Tu entravas no café para me ver, diariamente, e eu dia a dia servia-te o café, não te via, apenas lobrigava o sol, a chuva, o vento, o voo das aves para lá das vidraças…Talvez esta Maria de hoje não se deixe perturbar tão facilmente pelas belas palavras – as tuas, de agora -, a outra Maria, aquela por quem teus olhos se embeveciam numa apaixonada ternura, aquela que te despertava do cismo de jovem quase adolescente, que te assava a imaginação em febris sonhos diurnos e indubitavelmente noturnos, aquela Maria era muito ingénua, a bem dizer uma criança, ainda que a morar num corpo de mulher, já redondo, apetecível. Na verdade, essa criança-maria, já corpo de mulher, não havia sido tocada pelo incêndio do teu olhar, nem sequer uma luz bruxuleante iluminou o silêncio expressivo do teu olhar, porque eu era cega à paixão que despertava; nada nos unia, nem as palavras que nunca ousaste pronunciar; apenas um vazio imperou entre ti e mim, ou seja, a ignorância da tua existência. Decerto, a tua pessoa comedida e tímida agarrou ainda mais o silêncio desse tempo, esse frugal contacto que medeia o ato de servir um café. Mas tu foste unicamente grão de poeira, ou nem isso, já que a lembrança de ti persiste alapar-se ao zero total. Eu esperava pelo príncipe encantado, e tu não eras propriamente o meu príncipe, se o fosses eu tinha-te olhado, sorrido para ti, talvez até merecesses o meu primeiro beijo de amor. Tens razão, sou mesmo a Maria, mas nesse tempo recuado era outra Maria, mais comedida, envergonhada, ainda que levitando na distração sempre a procurar o sol, o vento, até a chuva, o voo das aves…

A primeira Maria andava na escola primária da aldeia, rapazes dum lado, raparigas dum outro, mesmo sem muro a separar, apenas uma linha imaginária; era uma escola pequena, quase de brincar. Nem rapaz nem rapariga cruzava aquela linha fictícia; a palmatória da professora logo se erguia, juíza implacável. “Maria”, a professora quase numa súplica na voz tremida, com pena da maldade, com a água marinha dos olhos ainda mais líquidos, com tristeza, “Maria, eu avisei”. A professora, que eu adorava, “Maria, eu avisei” e a palmatória, condoída -, como se um pedacinho do meigo coração da mestra lá morasse - uma, duas vezes na palma que se lhe oferecia a medo...

Do outro lado do muro imaginário, o Quim olhava para mim, eu nunca reparei no Quim a olhar para mim, e ele a recordar-se com tanta nitidez da criança ladina que eu era. Porém, eu não possuo memória precisa do meu rosto, nem do meu corpo de menina traquina, como ele diz memorar, talvez fosse o meu sorriso, disse que era doce, e eu a fazê-lo travesso. Mas foi outra a Maria que isto escutou, passados muitos anos, ele disse, “como a fruta envelhecida no cesto, é a vida”, Maria ouvia sorrindo num misto de alegria e tristeza. Sei que não me quis magoar, apenas resistia a frescura daquela maria alojada na memória da infância, e acrescentou a corrigir algum dano, “estás ainda muito bem”; eu não me lembro dessa criança que fui, para lá duma imagem quase fantasma, apenas recordo o moreno da pele a catar o sol ainda que o sol fugisse de mim, e eu a procurá-lo por entre as rendas da ramagem das árvores. “Gostava de ti”, dizia o Quim. Claro que eu não sabia, nunca soube desses amores infantis, se os tive não os tive.

Depois apareceste tu e liga daqui e dacolá descobri que vocês eram irmãos, imagina, irmãos. Do Quim eu tinha lembrança, de conversas em tempo adulto, de confissões posteriores, “gostava de ti”, teimava o Quim.

Mas de ti, Rodrigo, nem teu rosto recordo, não eras o meu príncipe encantado, eu apenas te servia o café... a espreitar o azul. Dizes sempre que tens saudades dessa Maria adolescente, e o Quim diz que tem saudades dessa menina

... e um dia conheci o António. Era já uma outra Maria, com corpo de mulher, seios a despontar no vestido justo, a pele sempre morena, os olhos espraiados nas águas do rio a pedir viagens, a sonhar viagens, a delirar pela limpidez da corrente. No entanto, uma maria a divagar pelos romances de cavalaria, sempre à procura do príncipe encantado. Tu, António, não eras o príncipe encantado. Desejavas-me, “foste a minha primeira paixão” e eu desconhecia tal, mas ignorava tanta coisa como o poder das hormonas, isto é a Maria de agora a falar, a outra Maria, como disse, sonhava com romances de cavalaria e com romances históricos de Walter Scott…Essa Maria dum verão cultivava o intelecto; contigo, António, as nossas conversas almejavam outros voos, e divagávamos, como insetos atraídos pela luz, por teorias filosóficas.  Estudavas no liceu e como eras mais velho deslumbravas-me com os teus conhecimentos. Quando me pediste namoro cortei contigo, fiquei furibunda, acreditava na tua sincera amizade, ainda não entendia a amizade como contrapartida do amor. E mais tarde, descobri pelas linhas travessas das linhas sociais que eras irmão do Quim e do Rodrigo, ele, o Rodrigo, que diariamente me procurava e a quem eu servira o café sem o ver, com tanta distância de permeio, porque não era o meu príncipe encantado.

Ainda. Não havia descoberto o amor, apenas certo encantamento platónico me atraía… pelo Jorge. Mas o Jorge fica para outro dia, amei-o com todo o deslumbramento dum primeiro amor, platónico, repito. Não seria o meu príncipe encantado, presumo, senão ter-me-ia atrevido ao meu primeiro beijo de amor. O meu primeiro beijo, aconteceu um pouco depois, nem eu sabia se era de amor, foi um beijo roubado que me pôs em alvoroço e me pespegou uma insónia de bradar aos céus; nessa noite lembro-me de levitar pelo quarto, pelo quintal, sobre as árvores da rua, como se me houvesse nascido asas nos pés, ou na alma, pois o corpo continuava sereno. Todavia a partir dessa noite, a maria após beijo, deu consigo a pensar em coisas em que nunca havia refletido, a sentir umas humidades esquisitas, seria do calor, era verão, matutei.

Falas de saudades dessa jovem Maria, e eu sorrio. Muito mais tarde descobri que tu, António, eras irmão do Quim. E sorri. Achei mesmo divertido. E agora tu, Rodrigo, és irmão dos dois? Continuo a sorrir.

Chamo-me Maria, a mesma Maria que já chorou ranho e ranheta, que se anulou, que se marginalizou, que se deixou humilhar…e que se rebelou. Sou uma Maria entre tantas Marias desta terra, deste país, deste mundo. Hoje até acho divertido este ser maria, já que a Maria de agora se sente livre, talvez feliz como nunca. Certo que não encontrei o príncipe encantado, também já esqueci a trama de todos os romances de cavalaria.

Soube que o António era o rapaz do rio, porque ele me enviava mensagens inocentes e ignoradas por mim. Como muitas que ignoro, até porque tenho de limpar a minha caixa de correio de vez em quando, senão entope, e depois é o cabo dos trabalhos. Mas o mais caricato não foi apenas vocês serem irmãos, foi o facto de vocês serem primos da Rosa Maria, a minha querida e doce amiga da infância. Eu fiquei incrédula, esta Maria pensou mesmo que a vida lhe estava a tramar alguma que justifique estes acasos como simples coincidências. Serão? Depois de me saturar com tanta mensagem que não identificava, resolvi esclarecer todo este imbróglio com o António: “sim, sou esse todo”, era o António do rio. Marcámos um encontro para tomar café e passar a pente fino as lembranças.

Maria, eu própria Maria de ontem e Maria de hoje assim assim, tendo em conta que apenas reconheces de mim essas saudades, e antes que seja tarde demais, aqui te formulo o convite para tomar um café, num dia de verão, pois sabes, já aqui to mencionei, ando sempre atrás do sol ainda que ele fuja de mim, e no verão é mais fácil encontrá-lo à mão de semear.

 

Bernardete Costa

 

 

 

 

publicado por Bernardete Costa às 18:31

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