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Quinta-feira, 17 de Janeiro de 2019

PORQUE FOSTE?

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Cheguei como tanta vez o faço. Olho-te na fotografia, um raiar de riso fininho nos lábios cerrados. De seguida pergunto: porque foste?
Eras mais velho do que eu, e depois? A morte tem hora certa, idade precisa?
Mais certa é esta hora de fazer o jantar, de fazer as camas, de levar os netos à escolha, ao ginásio…E de fazer as compras. E eras tu que fazias as compras, já adivinhaste o trabalho que ficou para mim. Este meu estar sozinha tendo tanta gente a cuidar, mas não te tendo a ti. Se me fazes falta? Claro que me fazes falta. Agora estás aí na fotografia. Alheio, quase que te vejo risonho, numa de gozo fininho como era teu costume. E desse gozo fininho também tenho saudades: quem pega comigo, quem me contraria e me proíbe, como tu sempre a contradizeres-me e sempre com esse gozo fininho. Hoje sei, não era gozo era mesmo vontade de brincar. Sabes que nunca te adivinhei essa vontade de brincar com as circunstâncias, com as pessoas?
Que ninguém diga que não há saudades. Elas aparecem sem ser avisadas do meio do nada, ou do meio de tudo. Está-se sozinha e elas resplandecem a doer no teu lugar vazio; estou acompanhada e elas relembram o teu lugar, mais um, o teu lugar agora sem ti. Eu sei, ainda que me custe, de nada adianta convencer-me que não, não estás mais aí; sei lá por aonde andas, sei lá onde…; é um mistério, dizia a minha mãe, um mistério que algum douto não logrou ainda descobrir, apenas se aventura por convicção disto e daquilo suportadas por certos raciocínios e espiritualidades. Depois a fé.
Ah, a fé é que nos salva. Já tu dizias. Eu tenho fé. Vou à missa, à igreja, ao cemitério. E nunca esqueço a vela nem as flores. Muito vivas e fulgentes; mas tu nunca dizes nada. O teu silêncio é assustador. Mas mais assustador é este meu viver sem ti. Sem presente. Sem futuro. 
Se vivo, para que vivo, para quem vivo se me faltas? Filhos, netos são flores e frutos que se libertam das raízes e florescem noutros prados, são aves que alçam voos distintos e longínquos. Tu eras a minha árvore, o meu ramo, o meu voo. E foi mal que assim fosse. Crescíamos tão gémeos que nos revíamos como o mesmo reflexo do espelho, voávamos tão juntos que éramos asas do mesmo corpo. Sem o teu ramo, sem a tua asa, desequilibro-me e tombo redonda no chão. E este é o chão que evito pisar. Nele viverei prostrada, desligada do meu eu que resta. Para minha tristeza e dor não me ensinaste a viver deslaçada de ti. 
Estás aí, não respondes? Claro que não, tu não existes mais, apenas vives na mágoa do meu coração; este músculo arranhado que não aprende a ser sem ti. Apenas desliguei o meu corpo do teu. Mas a vida é uma contradição, e já aqui me digo e desdigo. O certo, aos meus pensamentos nem sequer fluem desejos libidinosos apesar da tua proximidade ainda tāo carnal. Mas esses deixei-os morrer contigo. Sou eu a convencer-me armadilhada à tua ausência no calor do leito comum. Sou eu a valorizar somente o teu estar na fotografia, vigilante na sala da casa, a orientar, a comandar o meu presente. Essa foto idêntica a esta, esse riso de gozo fininho. Desse gozo fininho de que tantas saudades sinto.
Vou embora, é tarde. Não fiques contrariado pela minha demora. Donde vens, já viste as horas?, ouço-te. Não, não me esperes mais, é melhor assim. Arranco esta raiz que ainda a ti me prende. Nem a minha crença divina me aconselha a viver contigo na memória ainda tão física. Eu sei, sou uma pecadora a bater com a mão no peito. Confessar-me-ei, perdoa padre que pequei...; e voltarei ao nosso leito a deslizar a mão pela forma do teu corpo, a pedir à tua boca na minha um sopro de vida. 
Ainda assim, é um contrassenso, eu sei, morro devagarinho, um pouco por dia ao aprisionar este riso que sempre brotou atordoado quando te ausentavas. Este mesmo riso que trepa por mim acima e me cocega a pele, os músculos, o esqueleto. Será que te irritas se der uma gargalhada?
Não te zangues, aliás até podia hoje nem chegar a casa, pernoitar longe de tudo. Afastada do leito comum que me traz o teu aroma, os sons do teu corpo. Por vezes, sinto, quero ainda ser um pouco de asa. Permites ser essa asa sem a tua asa?
Afinal acordo do mesmo sonho: grito assustada, uma estupidez este medo de ti se tanto te quero ainda; se ainda tanta falta me fazes porque grito. Um grito é um susto. Responde-me: tu assustas-me?

publicado por Bernardete Costa às 18:22

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