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Domingo, 22 de Janeiro de 2017

TARDE DE MAIS

 

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Tarde de mais

 

Cheguei. Algum dia chegaria, creio que to prometi da última vez que te vi. Avancei ainda a tempo de depositar um beijo na tua fronte fria e lisa. Como estás bonita, a neve coroando-te o rosto estranhamente rosado, o corpo firme, robusto, deitado no teu último leito. Sabes, não vou pedir-te que me desculpes desta hora tardia, eu sei que te prometi voltar, e até sei que me reconheceste, “sim, és tu, a minha afilhada”, disseste e sorriste radiosa, cavando-se na tua face aquelas covinhas que fizeram o meu fascínio de criança. Porém, se me reconheceste, se entraste num tempo idêntico e num mesmo espaço, logo partiste para esse outro mundo que construíras, que era só teu, que te pertencia, onde somente cabiam os teus monólogos, as tuas cantigas, os teus risos...

Passei muito tempo sem te ver, escudei-me - sei que egoísta e vergonhosamente - no facto de te saber ausente deste mundo a que pertenço. Um mundo feito à medida dos meus passos, de atitudes clarividentes (quão suspeita esta afirmação!), de realizações, de conivência com outros que, considero, consideram-se, normais. No entanto, repara, não há remorso que faça emergir ao meu olhar uma pequena lágrima. Gostaria de poder chorar como convém nestas situações de perda, mas não o faço. Olho-te e sei que me compreendes e, porque não dizê-lo, sinto-me feliz por poder gravar a tua imagem, assim bonita, no meu coração e por ainda chegar a tempo; feliz pelo reencontro que, já frente à igreja, tive com os primos, os teus inúmeros filhos. Foi com os olhos humedecidos pelas recordações boas de uma infância partilhada, com sorrisos radiantes que nos abraçámos (vê como facilmente, então, as lágrimas me ocorreram, já tu o dizias “tens as lágrimas no primeiro andar”) e reatámos o calor dum tempo que não quero perder.

Eles cá permanecem. Tu acabas de partir. Será que o teu espírito voga sobre nós, sorri radiante da expectativa de uma eternidade em que acreditavas? Sim, vejo-te e desejaria possuir a tua fé, a crença nos teus anjos, nos santos, no Deus que trazias dentro de ti. E, se acredito que assim seja, é só porque povoas a minha memória antiga com gargalhadas e risos; porque me ficaste, e ficas, pelo halo de doçura, da ternura desmedida, da jovialidade com que rolavas connosco pelo chão, brincavas como se outra criança fosses; pela paciência e dedicação com que recebias o teu marido, depois da costumada e longa ausência. Ele chegava calado, nada justificava e tu o recebias como se houvesse partido de manhãzinha. E sabias que logo abalaria, para tardar a voltar.

Tão criança ainda, não cabia em mim qualquer discernimento de amores e desamores. De relações de conjugalidade. Apenas sentia a ausência, bastante, de quem te devia afeto e companhia. Afinal, a transportar para a tua vida uma outra ausência, da criança que eu era. Desconhecedora da exigência da vida perante um rancho de filhos.

Assim foste pai e mãe. Arcaste com a duplicidade de tarefas que competia partilhares com outrem. E ainda te sobrou tempo para acolheres no seio familiar esta tua afilhada que teima em crer que ainda existes “corpo e alma” como gostavas de dizer, porque te vejo aí.

 Talvez, devassando a boa recordação que me deixaste eu tente acreditar que, para além de ti, matéria física, perecível, algo mais exista. Talvez seja essa alma que enchia duma luz abnegada a tua vida solitária. Sei que se o pudesses fazer o negavas “não, solitária não, tinha-vos a todos”. Mas, madrinha, será que todo o amor que te demos, substituiu a ausência do grande amor da tua existência? Como suportou o teu corpo de mulher os imensos apelos duma vida que pressentia cheia de ardor e de vivacidade? Só agora, que aí estás, tão hirta e silenciosa como nunca o foste, sinto através deste solilóquio mudo que talvez te pudesse ter sido útil noutros tempos, num outro espaço. Ou não? Há dores que, quando adormecidas, deixam de magoar, parece que cicatrizam, que até inexistem. Creio que foi o que aconteceu contigo. Sublimaste-as sem recalcamentos, sem te violentares nem te humilhares, e seguiste um rumo que não traçaste, que porventura nunca sonharas em teu tempo adolescente. Como saber? Divagando, tento adivinhar através de uma outra mulher que sou, a dolorosa sensação de uma solidão que não forjaste.

Agora, tudo acabou para ti. Mas terá efectivamente acabado? Nunca mais ouvirei os teus risos, a tua cantoria, os teus monólogos sem sentido, jamais verei o balancear do teu corpo ao longo do dia, os teus gestos indecisos, o teu olhar mortiço. Porém, dir-me-ias se pudesses, que a tua alma caminha para Deus. Acredito que contigo assim seja: não podes deixar meramente de existir! Ficarás vogando entre as minhas mais saudosas recordações, e se esse teu Deus e esse paraíso pelos quais tantas vezes apelaste existem, se esse Deus quantas vezes invocado domina sobre os espíritos, para Ele caminharás, indubitavelmente.

 

 

Bernardete Costa

 

 

 

 

publicado por Bernardete Costa às 21:20

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