https://youtu.be/QLCDymoJD_0
Vejo-me ao espelho e que vejo? O meu reflexo, dirão. Sim, vejo o meu reflexo mas não vejo uma grande parte de mim.
Aquela parte de tristeza sem razão ou de motivo ainda que fútil, aquela insatisfação de estar sem saber para quê…, mas também a parte de sorriso fácil, de alegria embebida pelo simples voo duma ave, aquela parte de mim caminhante de sol, vento, neblinas e areias…
Acabei de ver o filme" Meu nome é Alice", em que à personagem principal, Alice, é-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer genético com 50 anos de idade; e até esse repúdio de medo não se visualiza na imagem que o espelho me retribui.
Mas, essencialmente, a partida da Daniela, a jovem de ossos de vidro, como diz o povo, em muito contribuiu para este meu estar no espelho sem identificação com o meu eu.
Nada, a não ser um rosto impávido, transparece no meu reflexo que se assemelhe ao aperto na alma que ainda permanece ao saber da partida da Daniela, sei lá para onde; ao saber que a Daniela resolveu, ou alguém por ela, abandonar este mundo por onde caminhou sempre de sorriso aberto e doçura na voz. Se foi um deus que a chamou é inaceitável, um deus não obriga ninguém a partir quando esse alguém sorri com tanta facilidade ao sofrimento, à vida macabra que viveu desde o nascer.
A Daniela, depois de 34 anos de vida a sorrir e amar tudo e todos, não resolveu ir-se embora. Assim, sem mais, desistir. Talvez tenha sido daquele aperto no peito que a estrangulava. A Daniela viu-se obrigada a aceitar o destino de nascimento. Contrariada, creio. Os sorrisos não enganam. O último sorriso não enganou.
Quando soube, o meu eu retido no espelho não se alterou. Mas o meu coração encolheu como um punho a doer no peito. E nada se viu no espelho.
Cortei a mais linda e alva orquídea do meu jardim. Era mais fácil comprar algumas brancas rosas, mas aquela orquídea significava tanto para mim, que só, tu, Daniela, a merecias. A recusa em aceitar a tua ausência definitiva levou-me, resoluta, com tanto amor o fiz, com que delicadeza, a cortar a flor que te seria destinada.
Ainda te fui ver à igreja. Apenas lobriguei a enorme quantidade de flores que te cercava; apenas senti a dificuldade em caminhar até ti numa igreja completamente cheia.
Sentei-me no largo da igreja a imaginar-te tão frágil. Mas tão resistente. Rejeitei seguir-te até à última morada. Depois, sentindo o sol varrer a avenida naquele fim de tarde, dirigi-me sozinha até defronte ao lugar onde teu corpo já adormecia na inclemência de morte. Tua mãe não suportava a tua partida. É normal: o destino dos filhos não é partirem antes dos progenitores. E ela, os teus familiares, os teus amigos, quem de ti gostava, não acreditavam que de pois duma luta de 34 anos te fosses assim sem mais.
E o meu reflexo no espelho nada diz da minha revolta contra esse deus que te levou. Deus assim quis, ouvi de alguém que chorava copiosamente junto aos sete palmos de terra que te eram destinados. Não só por ti, Daniela, mas também pela Sofia distraída numa praia do Algarve, por outras crianças trucidadas pela guerra, pela desumanidade do homem. A haver um deus a sério, ele não te levaria, nem à Sofia, nem a milhares de crianças mortas pelas balas da guerra e pelas agruras da miséria e da fome.
Continuo a tentar visualizar no meu reflexo do espelho uma parte de mim que o espelho não reflete.
Assim por aqui ando, apenas o meu reflexo a sorrir, com modos educados. A conversar normalmente com modos educados. A aceitar cada dia como mais um com resignação educada. Sou apenas o meu reflexo no espelho. A outra parte de mim perdeu-se nesta inquietação.
Bernardete Costa