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Segunda-feira, 30 de Janeiro de 2017

BORRASCA DA GROSSA

 

BORRASCA DA GROSSA

 

O sol despenhava-se no horizonte como a luminescência dum tesouro, de tal forma que não enxergava praticamente nada; apenas uma névoa rútila e os contornos dos barcos adornados nas areias a aguardar que a cegueira da luz esmorecesse na noite que se aproximava.

 

Cegueira foi a vida de madame Silva. Casara com um advogado de renome na cidade de província para onde foram residir após as núpcias. Burgo acolhedor, casario branco a bordar ruas e avenidas, apenas 4 andares acima da cota soleira; por vezes, as chuvas a gorgolejar pelos telhados de ardósia e de telha portuguesa e os ventos a brincar numa fúria de nortada descarando a ondulação ribeirinha; e quantas, o sol, magnificente, a beijar o espelho do rio, ou então escondido nas sombras terríficas da tempestade que se aproxima, como agora, a espreitar com seu olhar de fogo por entre a leveza de nuvens mansas que persistem a sossegar as gentes do povoado, a sossegar numa manhã traiçoeira os pescadores que

 

amanhã, vamos ao mar

 

Madame Silva, de seu nome de casada e bem casada, aventurava-se indiferente pela vizinhança bisbilhoteira e percorria-a numa solidão aprazível - notava-se pelo sorriso que esboçava deixando entrever os dentes pequenos e brancos, e também pelo cantarolar de modinhas que soprava por entre os lábios húmidos e apetitosos, ainda.

Deambulava pela avenida, num desses fins de tarde mágicos, a escutar os pescadores  que perscrutavam aquela tela escarlate a naufragar no elétrico cinza do horizonte

 

amanhã não vamos ao mar

 

Senhor Zé – chamava madame Silva -, tem aí o barco, pode passar-me para a outra margem?

 

Zé das Areias ficou boquiaberto perante o pedido de madame. Conhecia as águas ratoeiras do rio que não possuíam segredos tal qual os dedos de sua mão. Também conhecia o senhor Silva, ainda que não pusesse as mãos no lume por ele. Sabia do feitio amável que exteriorizava e do seu ar bonacheirão de quem pouco se importa com a vida, porque ela vinha-lhe, como é uso dizer, comer-lhe à mão através duma reforma choruda de deputado da assembleia da república; por sua vez, madame não era o tipo de senhora que fizesse tal pedido, era mesmo estranho na pessoa tão alheada da madame, um alheamento simples, é certo, mas sempre alheamento.

Senhor Zé, passa-me para outro lado, insiste madame, perante o mutismo do pescador como se o gato lhe houvesse comido a língua ao almoço.

 

Mas madame, este tempo de acalmia é breve. Logo vem tempestade, não tarda muito. A madame atravessa rio e depois? Quer que a vá buscar? Não sei se o poderei fazer, o meu saber diz-me que vem borrasca…; sabe, a experiencia é o medo!

 

 

Bem, senhor Zé, já sei que tem medo, vou pedir ao…

Madame, interrompe Zé das Areias, eu levo-a…, no entanto a experiência diz-me o quão perigoso é a madame permanecer por aqueles lados, agora que vem tempestade da grossa.

A madame olha-o por entre a vírgula dos olhos cinza de veludo; no seu rosto, parcialmente coberto por um largo chapéu, pressente-se um relâmpago de impaciência faiscar no olhar de veludo macio.  Zé olha fascinado a beleza daquele rosto e daquele corpo mal disfarçados pela capa de chuva vermelha e pelo chapéu encarnado. Se fosse uma sereia não seria mais bela, mais sedutora, até a voz lhe soava ao cristal ciciante duma fonte, ele marado a ouvir a fonte e a hesitar…

Vem ou não vem, interpela madame.

De imediato o pescador desamarra o barco do pontão e entra com um salto ágil para o seu interior; toma os remos e, nem ligo o motor, não vale a pena.

Como queira, desde que me leve para o outro lado; e a mulher salta graciosa para a embarcação.

Por longos momentos apenas se ouve o chap chap dos remos a bater na escureza profunda das águas, depois a areia a riscar a madeira lodosa, depois a água numa onda suave a beijar o casco.

Eis-nos senhora. Mas veja, ao longe, não é preciso ir à faculdade, vem borrasca e da grossa, diz-me o meu saber, persiste o bom homem no seu conhecimento de vida, experiência também é ciência.

 

Eis quando do meio do pinhal surge uma figura masculina, imponente. Arrasta os pés que impelem areias, e caminha com a decisão de quem quer e sabe o que quer e deseja a posse. Homem e mulher enlaçam-se num beijo a arder desejo. Zé das Areias permanece agarrado ao chão arenoso sem saber o que pensar da cena que se desenrola mesmo à sua frente, sem rebuço, sem disfarce: a madame e aquele cavalheiro, másculo, a colhê-la no encaixe dos seus braços, a madame casada com o senhor Silva, pessoa tão cordial, tão afetiva, a madame a por os cornos ao senhor Silva, assim mesmo, em vernáculo puro, à sua frente, nem

 

adeus senhor Zé, depois vem-me buscar

 

Zé das Areias por respeito e solidariedade com o senhor Silva, recusa aquele testemunho: vira o rosto ao cenário de loucura e de indecência que entrementes se desenrola, salta para o barco, e somente quando pega nos remos ousa levantar o olhar surpreso e indignado:  à sua frente apenas o vazio do pinhal, areal e mar, pois de amantes em amor picado, que sexo explicito era, nada. Raios onde se meteram, exclama num rugido surdo. E a responder nada, apenas pinhal, areia e mar.

Chegado à outra margem, busca refúgio em casa da tempestade ameaçadora que acaba de desabar. As águas rapidamente crescem em seu leito de pedras e lamas, e tudo arrasam à sua passagem. Do lado de lá, a península de areia submerge no sal das águas turvas e revoltas. O céu colou-se à terra, irmanou-se do mesmo furor através dos ventos que sacodem águas, arbustos, árvores.

Na fúria viril de muitos anos de experiencia em relação conjugal, Zé procura a mulher debaixo das cobertas, tateia brusco a ausência da mulher. E de espanto em espanto vê a capa vermelha e o chapéu encarnado nas costas da cadeira.

Caralho, brada o pescador num assombro infante, estou a sonhar, grande porra!

 

Bernardete Costa, 2017

publicado por Bernardete Costa às 20:28

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