https://youtu.be/QLCDymoJD_0
VIOLÊNCIA DOMÉSICA
A minha tia, um dia destes, em jeito de confidencia - há memórias que se segredam, podem apunhalar mentes mais ortodoxas - dizia sobre a violência doméstica, discurso tão em voga nos tempos de hoje ainda que velho como o tempo, dizia eu, a minha tia afirmava, uma treta essa da violência doméstica.
Perante o meu olhar incrédulo, nada de Alzheimer, minha linda, apenas coragem de assumir uma realidade que não se compadece com o social correto. À frente. Era eu quase recém-casada, apenas um pimpolho me ocupava o colo na época, discutia com o meu companheiro, o teu tio, nem lembro mais sobre, quando, “vai para a puta que te pariu”. Logo uma mão pesada estalou no meu rosto como uma seta envenenada. Sim, envenenada pois fiquei azeda que nem fel, e foi só esperar que ele levantasse ferro para o trabalho; armadilhada de dois sacos e com o puto escarrapachado na ilharga, abalei porta fora.
Estranhas, não admira, sempre fomos, eu e o teu tio um exemplo de casal. Talvez até o teu exemplo. Mas continuemos que de bons exemplos está o mundo cheio e mal não faz ao dito cujo. O coitado, ainda que agressor físico, eu porém havia provocado a agressão, apenas hoje, passados tantos anos, virada para os meus pensamentos, dei comigo a arcar com tal culpabilidade. Ui, abres esses olhos de espanto mudo; é verdade, sinto-me culpada. Mas ainda não acabou aqui o fenómeno da violência doméstica no meu doce lar que tanto admiravas. Enfim, com o teu primo escarrapachado na ilharga, mais dois sacos, chamei um táxi e abalei para a casa de uma amiga.
Com a raiva a sair pelos cantos da boca em forma de espuma, recontava à Berta o estalão no rosto, omitindo o “vai para a puta que te pariu”. Não voltas para ele, ficas aqui até arranjares emprego. Mas dizer e fazer vai a altura dos Himalaias ou mais. A noite aproximava-se sorrateira e ela, mais sorrateira do que o tempo, liga para o teu tio, está aqui, coitada.
Sem emprego, e sem qualquer hipótese de o arranjar assim de pé para a mão, emprego foi sempre difícil de conseguir, exceção para operária ou criada de servir, vê se entendes, a tua tia educada com os pergaminhos da tua avó, nem pensar.
A minha tia pareceu sorrir enquanto se recostava nas almofadas. Estás a dormir, quis saber. Minha sobrinha linda, não durmo, estou velha, mas as memórias mantêm este corpo seco como vide desperto, e ainda com vontade de dar umas gargalhadas. Dito isto desatou a rir de tal forma que fiquei preocupada ainda que contagiada, pois logo a acompanhei na hilaridade.
Então contou. Outra vez, o teu prezado e querido tio zangado com algo que lhe disse, que lembrança não tenho de tal, ergueu a mão num gesto de quem vai passar da ideia ao ato. Veloz, como um felino a quem se lhe calce a cauda, ergo o banco onde estava sentada e, “atreve-te!” Ai, deixa-me rir, filha. O certo é que nunca mais o teu tio tão pacato, e é, melhor, foi, descanse em paz, acredita, se atreveu ao dito gesto da mão erguida. Nem sequer em pensamento, presumo.
Mas tia, a violência doméstica é um flagelo mundial, até aqui no nosso país, gente de brandos costumes, dizem, tanto homicídio de mulher alguma vez se verificou. Já viste, quantas mulheres assassinadas, quase sempre pelos companheiros ou ex-companheiros, por dá cá aquela palha, ciúmes, dor de corno, vingança, eu sei lá. E até as crianças são levadas na enxurrada da loucura homicida. Não dá para entender, tia, não consigo...
Minha linda, a sociedade está a enlouquecer, aqui como por aí fora, até à Patagónia. As autoridades, numa boa parte dos casos, fazem vista grossa, são na sua maioria machos, os gajos, percebes?, depois a impunidade é o que se sabe, também na sua maioria os juízos são machos carregados de testosterona. Unicamente uma questão de educação. Desde o berço que as criancinhas, machos e fêmeas, deveriam interiorizar o respeito mútuo e o que ele implica.
Fez-se silêncio, apenas cortado por um ligeiro assobiar. Mais uma vez a tia mergulhava no sono, nos sonhos, como ela afiançava, já que eles, os sonhos, eram uma espécie de realidade onírica venturosa. Sabes, diz tão de repente que me assustou, se as mulheres fossem todas mais fortes fisicamente que os homens, ias ver quem matava quem. Os filhos da mãe contam com a fragilidade muscular das fêmeas, porque doutra forma pensariam duas vezes. Claro, vai para a puta que te pariu é motivo para tirar do sério qualquer macho que se preze. Mas matar, matar mesmo, ainda que se suicidar de seguida, anda tudo louco, o mundo gira ao contrário. Depois, querida sobrinha, a mulher, com toda a sua sensibilidade, vive confinada à vergonha familiar e social, mais a proteção da rapaziada, e acaba por se deixar amesquinhar, e inibe-se de se manifestar, olha, como aquela de erguer o banco e, “atreve-te!”
Novamente a tia semicerrou os olhos e pareceu levitar num sono de passarinho. Afaguei-lhe levemente o rosto e como se nada fosse retomou o fio à conversa.
Mas devo-te uma explicação, sendo certo que a violência doméstica não é fenómeno dos tempos modernos, noutros tempos até era bem vista, ou pelo menos tolerada, estás a ver, entre marido e mulher ninguém meta a colher; e a virilidade masculina atingia os píncaros da notabilidade social, homem que é homem é macho, e manda, fazes, ou ...Olha, Gil Vicente na Farsa de Inês Pereira, o cabrão do marido, desculpa lá a exaltação da titia, ameaçava dar-lhe pancada só por Inês cantar!
Apenas a sociedade evoluiu, e o que era deixou de o ser. pois agora esta de um tal dum juiz vir justificar a violência doméstica por isto e por aquilo, tira-me cá do sério; essa da “vai para a puta que pariu” virou eufemismo - é só ouvir os finos vernáculos usado pela juventude de hoje, por dá cá aquela palha.
Correndo o risco de ser acusada de radical, eu cá resolvia a questão, à primeira suspeita de violência doméstica, cortava-lhes o coiso...E a besta do juiz era o primeiro a quem fazia a experiencia, até para verificar o efeito do objeto cortante.
Esta minha tia...
Bernardete Costa
É PARA RIR
Não sei se rir se chorar. O certo é que há muita gente que acredita em tudo o que lê e ouve aqui e acolá.
Eis uma noticia difundida por alguns órgãos de comunicação e que está a pôr em polvorosa essa boa gente: idade de reforma aos 69 anos – sendo que este número é interessante pela conotação que encerra e só por isso me dá vontade de rir.
Mas vamos lá esmiuçar a coisa: Um individuo com mais de 65 anos, muito trabalhador, acorda ao despertar estridente do despertador aí elas 6.30h, 7.00h da matina. Depois a ciática prende-lhe uma perna, as varizes são o que são, o reumático ataca um joelho, a osteoporose toma de assalto os ombros, as mãos, os dedos..., o catarro sufoca-lhe a garganta..., e mesmo assim, lá está ele(ela) no seu emprego, ligeiro ligeirinho, a cumprir com a produção sob a ameaça dum AVC, a olhar vesgamente para um computador que lhe foge ao entendimento.
Pronto, estou a exagerar. Há muito boa gente que até preferia trabalhar fora de casa que aturar filhos e netos.., muita desta boa gente que domina, tal qual um hacker, os mais modernos e sofisticados pcs e respetivos harduwere softuwere Não se esqueçam, é para rir.
Essencialmente esta notícia, que em nada é confiável, remete-me para os idos tempos de antes de abril, em que a reforma era coerciva aos 70. Sim, no caso dos professores impunha-se aos 70 anos de idade. E lembro bem da bagunçada provocada pela miudagem, enquanto o docente dormitava na secretária – aconteceu comigo - , sofria de acentuada surdez, ou de cegueira originada pelas cataratas. E já agora, o que se passava nas repartições públicas: era de perder a paciência enquanto se esperava que o “velhote” fosse ali e acolá e desse provimento ao que lhe era solicitado. Aqui é para chorar.
Bom, os tempos são outros e 69 anos de vida ainda permitem muita vida para além – para tudo é preciso sorte, convenhamos. E o direito a usufruir um merecido descanso, fazer aquela viagem que se adiou toda uma vida, a sentir a ternura nos abraços dos netos, onde fica?
Não nego que a Segurança Social soçobrará com o pagamento das reformas em vigor. Até porque a juventude, pouca, ainda, ou mal, contribui para a dita. (aqui também se põe outro problema: sendo a reforma apenas aos 69 anos, esses lugares serão ocupados pela “Geração careca”, salvo seja, enquanto o desemprego dos jovens aumentará drasticamente). Mas que outras medidas se impõem, não nego. Mas obrigar o pessoal com mais de 65 anos a labutar em escolas, fábricas, oficinas...,não é o mais aconselhável, até porque a sociedade competitiva atual isso não permite, disto tenho convicção.
Duma coisa tenho certeza, as notícias falsas, melhor, tendenciosas, fazem as delícias de muito otário.
E como disse em epígrafe: é para rir!
Bernardete Costa
quando nasci
bebi das entranhas rubras da terra
todos os sonhos do mundo. meu rio meu mar
espelharam no meu olhar o horizonte fecundo
o oiro escorria do sol e a dança das folhas
tela ardente de ocasos outonais
vim ao fim da tarde a respirar vogais de vento e de chuva
mas ainda senti a réstia de sol
a fecundar o dia. fulgor de malmequer cor a semear
fragrância em jardim outonal.
colhi do fruto maduro a semente da palavra.
no alimento da luz e da névoa a suspirar amor
sorvi o futuro no sabor da alegria. vivi a dor e o prazer
pauta destino do meu ser
onde componho a música astral
que em mim
se faz poesia.
Bernardete Costa
um cravo vermelho incendiando a manhã
para ti, amigo. Para ti, poeta.
sei que partiste. mas abril chegará.
e mesmo sob a melancolia da chuva
o sol despertará as flores rubras
vivificando a tua memória.
um cravo para ti, amigo poeta.
e nas dores da tua sombra
no dia inadiável da tua partida
pedir-te-ei que subas os degraus do céu
e o requiem de mozart embalar-te-á
para que te não dês conta da vida.
Bernardete Costa
Suspensa de inquietos pensamentos, caminha na direção do café. A manhã ainda respira orvalho, um manto cinza encobre a linha do horizonte. Não há mar, apenas o barco que sulca o rio na pressa da foz: a adivinhar a barra pelo silvo da ronca.
Sabe que a noite ainda perdura nos seus passos, a prolongar-se no seu rosto triste. A noite trouxera-lhe o mesmo sonho, esse pesadelo de dor e ausência. Senta-se na mesa do canto, como a pedir proteção ao isolamento. Puxa dum livro que traz no saco, “O estrangeiro” de Camus, o livro do ridículo, há quem diga. Ao lado do livro pousado como numa distração atenta o telemóvel ligado à rede Wi fi; a ancestralidade da palavra lado a lado com a facilidade das mais recentes tecnologias, ao seu dispor.
O tempo passa enquanto toma o pequeno almoço - luxo recente, praticamente o único a que se dá o direito -, galão e pão com manteiga, pouca, que a saúde impõe certos cuidados. Depois de várias experiencias, cereais, sumos naturais, fruta, sementes, retoma o hábito de longa data, sabe que a idade que tem agarra-se a rotinas como lapa na rocha. E também sabe que as deve contrariar, exigir ao cérebro novas adaptações, novos esforços. Os neurónios agradecem, a crer em estudos recentes… e nem tão recentes como isso. Mas que importa, suspira, ninguém cá fica.
Solicita o jornal do dia. Quase sempre ocupado. Pelo preço duma bica a atualização dos acontecimentos; uma questão de economia caseira. Desta vez entregam-no de imediato. Tenta concentrar-se nas notícias. Apenas os títulos – os textos, as notícias, alarmam-na, invariavelmente. A crise, sempre a crise, o desemprego a corrupção…, a violência doméstica, o estupro, a pedofilia…, a debilidade da justiça, os julgamentos que não se fazem por falta de prova (quem tem dinheiro para pagar ricos honorários a advogados arrasta a situação até à prescrição, já tão banal a estratégia), a ameaça de rutura económica na Venezuela, no México... – Portugal emergiu do subsolo económico, valha-nos esta, ainda que... - a guerra e respetivos refugiados, os atentados terroristas, tudo, e não é de somenos, a expandir tal leque de incómodos.
Não pensar. O pensamento, melhor, o esquecimento, é adverso a tanta coisa má, tanto disparate, tanta violência. Pede a revista usual. Debruça-se em particular sobre uma ou outra crónica, com destaque para os escritores Valter Hugo Mãe, João Lobo Antunes, José luís Pacheco. Os textos poéticos atraem-na. A poesia salva-a, ainda que momentaneamente.
Mas querer não pensar não lhe basta. “Ninguém corta a raiz ao pensamento”, diz a canção, e sente que esta conceção é abrangente: desde as peripécias familiares a riscar quanta vez o bom senso, a criarem a dúvida, estou certa, estou errada, desde à consciência de em nada ou em muito pouco poder contribuir para um mundo melhor, esse mundo tão alheado do calor das discussões juvenis. Contrariamente, ao tempo adolescente da minha geração, em que se acreditava que tudo seria possível: paz, pão, educação...para todos.
Pega no seu bloco de apontamentos e a necessidade de passar para a escrita o que lhe vai na alma apoquenta-a, fá-la sofrer, mas é imperiosa. Debruça-se sobre o jornal a procurar motivo inspirador.
A comunicação social destaca a violência, as tragédias de faca e alguidar; o terrorismo merece-lhe enfoque especial, ainda que um terror lá longe, todavia cada vez menos, porque um terror tão perto que quase lhe podemos sentir o cheiro – já quase paredes meias com as nossas casas, os atentados à vida humana, à liberdade do ser humano como cidadão civil, político e religioso, persistem ainda com maior brutalidade.
Não, não refere apenas o terror perpetrado pela seita islamita. Pela ISIS – vulgo estado islâmico. Mas também à loucura, um pouco por toda a América, com feroz destaque para os EUA, que provoca o medo, o terror, a morte de pessoas inocentes com relevância para jovens, crianças e professores.
Não apresenta aqui números precisos de inocentes caídos sobre o fogo mortífero das armas. Qualquer um o pode fazer consultando a internet. Reconhece que é um número elevado, talvez mais elevado que as vitimas tombadas num qualquer atentado dito terrorista.
Com dor, por incapaz, que não esta escrita de opinião, ou até dum ou doutro poema, de nada fazer para atenuar este estado calamitoso de coisas. E esta impotência, este estar no seu canto de conforto, afinal esta cobardia travestida de palavras mais ou menos sonoras mais ou menos poéticas culpabiliza-a. Tira-lhe até o sono.
Levanta-se do seu canto que a isola um pouco do frenesim costumeiro da manhã de café e jornal. Com o saco a tiracolo sai sem se despedir de ninguém.
Aquela é louca. Ou malcriada. Ouve.
INSATISFAÇÃO
E era tudo tão belo, por fim a beleza do sonho maior de rapariga. O dia do seu casamento. A família. Grande. Ainda unida por imenso sangue. A morte longe. Até os avós contavam na enumeração. Um dia pleno de expectativa. A Felicidade. A alegria no olhar do pai. Esta já está. Com marido a precaver a vida, os acidentes da vida. O amparo para o presente e futuro. E velhice. A mãe, até que enfim, casada. A mãe sempre a temer a rebeldia daquela filha. Não amo, mãezinha, não o amo mais. A mãe a ter a certeza, desagradada, a concluir da insatisfação sentimental da filha, da insatisfação no amor.
Nunca serás feliz, a mãe a vislumbrar o seu próprio casamento, a sua união desamparada desfeita pelos muitos amores, pela insatisfação do pai. A culpa não é minha. O pai a dizer muito depois à filha também desamparada pela sua própria insatisfação.
Não o amo mais. Lês muitos livros, o marido também desamparado pela incompreensão, ela lia, lia, a leitura no banco dos réus. Culpada. Ela pela noite a buscar a luz nas páginas do livro. A luz longe. Longe do seu casamento. Ela a levantar-se do leito comum a procurar outra luz. A claridade da alegria, não plena, mas alguma. O frio da noite a gelar as lágrimas. Chorava. Tanta vez pelas noites. E sofria. Descontentada. Não amava. O amor dela não o sabia amar. Não lobrigava mais o amor primeiro com que o amara. Um dia.
Nunca te esqueci. A voz tanta vez evocada pelas noites frias. Em que buscava a luz. Procurava o antigo amor. Sempre insatisfeita. E a memória a trazer na noite fria beijos, sorrisos, doçuras, desejos por cumprir. E as lágrimas a doerem bem fundo. No coração, no corpo. Porque preterira o seu amor pelo amor presente. Um amor que era passado.
Bernardete Costa
Cheguei como tanta vez o faço. Olho-te na fotografia, um raiar de riso fininho nos lábios cerrados. De seguida pergunto: porque foste?
Eras mais velho do que eu, e depois? A morte tem hora certa, idade precisa?
Mais certa é esta hora de fazer o jantar, de fazer as camas, de levar os netos à escolha, ao ginásio…E de fazer as compras. E eras tu que fazias as compras, já adivinhaste o trabalho que ficou para mim. Este meu estar sozinha tendo tanta gente a cuidar, mas não te tendo a ti. Se me fazes falta? Claro que me fazes falta. Agora estás aí na fotografia. Alheio, quase que te vejo risonho, numa de gozo fininho como era teu costume. E desse gozo fininho também tenho saudades: quem pega comigo, quem me contraria e me proíbe, como tu sempre a contradizeres-me e sempre com esse gozo fininho. Hoje sei, não era gozo era mesmo vontade de brincar. Sabes que nunca te adivinhei essa vontade de brincar com as circunstâncias, com as pessoas?
Que ninguém diga que não há saudades. Elas aparecem sem ser avisadas do meio do nada, ou do meio de tudo. Está-se sozinha e elas resplandecem a doer no teu lugar vazio; estou acompanhada e elas relembram o teu lugar, mais um, o teu lugar agora sem ti. Eu sei, ainda que me custe, de nada adianta convencer-me que não, não estás mais aí; sei lá por aonde andas, sei lá onde…; é um mistério, dizia a minha mãe, um mistério que algum douto não logrou ainda descobrir, apenas se aventura por convicção disto e daquilo suportadas por certos raciocínios e espiritualidades. Depois a fé.
Ah, a fé é que nos salva. Já tu dizias. Eu tenho fé. Vou à missa, à igreja, ao cemitério. E nunca esqueço a vela nem as flores. Muito vivas e fulgentes; mas tu nunca dizes nada. O teu silêncio é assustador. Mas mais assustador é este meu viver sem ti. Sem presente. Sem futuro.
Se vivo, para que vivo, para quem vivo se me faltas? Filhos, netos são flores e frutos que se libertam das raízes e florescem noutros prados, são aves que alçam voos distintos e longínquos. Tu eras a minha árvore, o meu ramo, o meu voo. E foi mal que assim fosse. Crescíamos tão gémeos que nos revíamos como o mesmo reflexo do espelho, voávamos tão juntos que éramos asas do mesmo corpo. Sem o teu ramo, sem a tua asa, desequilibro-me e tombo redonda no chão. E este é o chão que evito pisar. Nele viverei prostrada, desligada do meu eu que resta. Para minha tristeza e dor não me ensinaste a viver deslaçada de ti.
Estás aí, não respondes? Claro que não, tu não existes mais, apenas vives na mágoa do meu coração; este músculo arranhado que não aprende a ser sem ti. Apenas desliguei o meu corpo do teu. Mas a vida é uma contradição, e já aqui me digo e desdigo. O certo, aos meus pensamentos nem sequer fluem desejos libidinosos apesar da tua proximidade ainda tāo carnal. Mas esses deixei-os morrer contigo. Sou eu a convencer-me armadilhada à tua ausência no calor do leito comum. Sou eu a valorizar somente o teu estar na fotografia, vigilante na sala da casa, a orientar, a comandar o meu presente. Essa foto idêntica a esta, esse riso de gozo fininho. Desse gozo fininho de que tantas saudades sinto.
Vou embora, é tarde. Não fiques contrariado pela minha demora. Donde vens, já viste as horas?, ouço-te. Não, não me esperes mais, é melhor assim. Arranco esta raiz que ainda a ti me prende. Nem a minha crença divina me aconselha a viver contigo na memória ainda tão física. Eu sei, sou uma pecadora a bater com a mão no peito. Confessar-me-ei, perdoa padre que pequei...; e voltarei ao nosso leito a deslizar a mão pela forma do teu corpo, a pedir à tua boca na minha um sopro de vida.
Ainda assim, é um contrassenso, eu sei, morro devagarinho, um pouco por dia ao aprisionar este riso que sempre brotou atordoado quando te ausentavas. Este mesmo riso que trepa por mim acima e me cocega a pele, os músculos, o esqueleto. Será que te irritas se der uma gargalhada?
Não te zangues, aliás até podia hoje nem chegar a casa, pernoitar longe de tudo. Afastada do leito comum que me traz o teu aroma, os sons do teu corpo. Por vezes, sinto, quero ainda ser um pouco de asa. Permites ser essa asa sem a tua asa?
Afinal acordo do mesmo sonho: grito assustada, uma estupidez este medo de ti se tanto te quero ainda; se ainda tanta falta me fazes porque grito. Um grito é um susto. Responde-me: tu assustas-me?
Janeiro é o mês de todos os recomeços. O Lions Clube de Esposende e o Rotary Club de Esposende não podiam recomeçar melhor - Noite de teatro pela Universidade Autodidata de Esposende, cuja encenação é da minha responsabilidade, e cujo elenco integra todos os atores da Oficina de Teatro da UAE.
A receita será partilhada entre o Lions Clube de Esposende e o Rotary de Esposende que, por sua vez, a farão reverter para causas sociais e afins.
Sejam solidários, apareçam.
Tragam um amigo, também!
TOMAR CAFÉ... ANTES QUE SEJA TARDE
Eu sou a Maria, a mesma Maria, mas uma Maria doutros tempos, já vais entender a razão. Também não é de difícil compreensão, todas as marias e maneis são os mesmos, apenas com tempo às costas e as respetivas alegrias, dores, paixões e desilusões que o dito se encarrega de nos dependurar aos ombros. Sim, sou a Maria, nem foi preciso dizer-to, tu reconheceste-me. “A garota de 14 anos, custa a crer”, disseste: rosto redondo, tez morena, como hoje esta mesma Maria, apenas a pele não se suspendia dos ossos, nem os cabelos são mais negros, são cabelos de avó, e o rosto angulou, murchou como flor há muito na jarra. Mas tu vieste ter comigo através do facebook, mas podia ser através do twitter, apenas para referir estas redes sociais, que outras mais pululam pela virtualidade, não adianta esforçar o pensamento, no escaninho da minha memória refugia-se já tanta informação - o certo é que eu assino contas nestas redes sociais por malandrice e por atrevimento! Desta Maria não tens recordações; e eu sei de ti, Rodrigo, porque me escreves mensagens, que caem todas no meu correio eletrónico, a entupir os canais de servidor, por isso eu soube de ti, repito, eu que nunca antes soubera de ti.
Tu entravas no café para me ver, diariamente, e eu dia a dia servia-te o café, não te via, apenas lobrigava o sol, a chuva, o vento, o voo das aves para lá das vidraças…Talvez esta Maria de hoje não se deixe perturbar tão facilmente pelas belas palavras – as tuas, de agora -, a outra Maria, aquela por quem teus olhos se embeveciam numa apaixonada ternura, aquela que te despertava do cismo de jovem quase adolescente, que te assava a imaginação em febris sonhos diurnos e indubitavelmente noturnos, aquela Maria era muito ingénua, a bem dizer uma criança, ainda que a morar num corpo de mulher, já redondo, apetecível. Na verdade, essa criança-maria, já corpo de mulher, não havia sido tocada pelo incêndio do teu olhar, nem sequer uma luz bruxuleante iluminou o silêncio expressivo do teu olhar, porque eu era cega à paixão que despertava; nada nos unia, nem as palavras que nunca ousaste pronunciar; apenas um vazio imperou entre ti e mim, ou seja, a ignorância da tua existência. Decerto, a tua pessoa comedida e tímida agarrou ainda mais o silêncio desse tempo, esse frugal contacto que medeia o ato de servir um café. Mas tu foste unicamente grão de poeira, ou nem isso, já que a lembrança de ti persiste alapar-se ao zero total. Eu esperava pelo príncipe encantado, e tu não eras propriamente o meu príncipe, se o fosses eu tinha-te olhado, sorrido para ti, talvez até merecesses o meu primeiro beijo de amor. Tens razão, sou mesmo a Maria, mas nesse tempo recuado era outra Maria, mais comedida, envergonhada, ainda que levitando na distração sempre a procurar o sol, o vento, até a chuva, o voo das aves…
A primeira Maria andava na escola primária da aldeia, rapazes dum lado, raparigas dum outro, mesmo sem muro a separar, apenas uma linha imaginária; era uma escola pequena, quase de brincar. Nem rapaz nem rapariga cruzava aquela linha fictícia; a palmatória da professora logo se erguia, juíza implacável. “Maria”, a professora quase numa súplica na voz tremida, com pena da maldade, com a água marinha dos olhos ainda mais líquidos, com tristeza, “Maria, eu avisei”. A professora, que eu adorava, “Maria, eu avisei” e a palmatória, condoída -, como se um pedacinho do meigo coração da mestra lá morasse - uma, duas vezes na palma que se lhe oferecia a medo...
Do outro lado do muro imaginário, o Quim olhava para mim, eu nunca reparei no Quim a olhar para mim, e ele a recordar-se com tanta nitidez da criança ladina que eu era. Porém, eu não possuo memória precisa do meu rosto, nem do meu corpo de menina traquina, como ele diz memorar, talvez fosse o meu sorriso, disse que era doce, e eu a fazê-lo travesso. Mas foi outra a Maria que isto escutou, passados muitos anos, ele disse, “como a fruta envelhecida no cesto, é a vida”, Maria ouvia sorrindo num misto de alegria e tristeza. Sei que não me quis magoar, apenas resistia a frescura daquela maria alojada na memória da infância, e acrescentou a corrigir algum dano, “estás ainda muito bem”; eu não me lembro dessa criança que fui, para lá duma imagem quase fantasma, apenas recordo o moreno da pele a catar o sol ainda que o sol fugisse de mim, e eu a procurá-lo por entre as rendas da ramagem das árvores. “Gostava de ti”, dizia o Quim. Claro que eu não sabia, nunca soube desses amores infantis, se os tive não os tive.
Depois apareceste tu e liga daqui e dacolá descobri que vocês eram irmãos, imagina, irmãos. Do Quim eu tinha lembrança, de conversas em tempo adulto, de confissões posteriores, “gostava de ti”, teimava o Quim.
Mas de ti, Rodrigo, nem teu rosto recordo, não eras o meu príncipe encantado, eu apenas te servia o café... a espreitar o azul. Dizes sempre que tens saudades dessa Maria adolescente, e o Quim diz que tem saudades dessa menina
... e um dia conheci o António. Era já uma outra Maria, com corpo de mulher, seios a despontar no vestido justo, a pele sempre morena, os olhos espraiados nas águas do rio a pedir viagens, a sonhar viagens, a delirar pela limpidez da corrente. No entanto, uma maria a divagar pelos romances de cavalaria, sempre à procura do príncipe encantado. Tu, António, não eras o príncipe encantado. Desejavas-me, “foste a minha primeira paixão” e eu desconhecia tal, mas ignorava tanta coisa como o poder das hormonas, isto é a Maria de agora a falar, a outra Maria, como disse, sonhava com romances de cavalaria e com romances históricos de Walter Scott…Essa Maria dum verão cultivava o intelecto; contigo, António, as nossas conversas almejavam outros voos, e divagávamos, como insetos atraídos pela luz, por teorias filosóficas. Estudavas no liceu e como eras mais velho deslumbravas-me com os teus conhecimentos. Quando me pediste namoro cortei contigo, fiquei furibunda, acreditava na tua sincera amizade, ainda não entendia a amizade como contrapartida do amor. E mais tarde, descobri pelas linhas travessas das linhas sociais que eras irmão do Quim e do Rodrigo, ele, o Rodrigo, que diariamente me procurava e a quem eu servira o café sem o ver, com tanta distância de permeio, porque não era o meu príncipe encantado.
Ainda. Não havia descoberto o amor, apenas certo encantamento platónico me atraía… pelo Jorge. Mas o Jorge fica para outro dia, amei-o com todo o deslumbramento dum primeiro amor, platónico, repito. Não seria o meu príncipe encantado, presumo, senão ter-me-ia atrevido ao meu primeiro beijo de amor. O meu primeiro beijo, aconteceu um pouco depois, nem eu sabia se era de amor, foi um beijo roubado que me pôs em alvoroço e me pespegou uma insónia de bradar aos céus; nessa noite lembro-me de levitar pelo quarto, pelo quintal, sobre as árvores da rua, como se me houvesse nascido asas nos pés, ou na alma, pois o corpo continuava sereno. Todavia a partir dessa noite, a maria após beijo, deu consigo a pensar em coisas em que nunca havia refletido, a sentir umas humidades esquisitas, seria do calor, era verão, matutei.
Falas de saudades dessa jovem Maria, e eu sorrio. Muito mais tarde descobri que tu, António, eras irmão do Quim. E sorri. Achei mesmo divertido. E agora tu, Rodrigo, és irmão dos dois? Continuo a sorrir.
Chamo-me Maria, a mesma Maria que já chorou ranho e ranheta, que se anulou, que se marginalizou, que se deixou humilhar…e que se rebelou. Sou uma Maria entre tantas Marias desta terra, deste país, deste mundo. Hoje até acho divertido este ser maria, já que a Maria de agora se sente livre, talvez feliz como nunca. Certo que não encontrei o príncipe encantado, também já esqueci a trama de todos os romances de cavalaria.
Soube que o António era o rapaz do rio, porque ele me enviava mensagens inocentes e ignoradas por mim. Como muitas que ignoro, até porque tenho de limpar a minha caixa de correio de vez em quando, senão entope, e depois é o cabo dos trabalhos. Mas o mais caricato não foi apenas vocês serem irmãos, foi o facto de vocês serem primos da Rosa Maria, a minha querida e doce amiga da infância. Eu fiquei incrédula, esta Maria pensou mesmo que a vida lhe estava a tramar alguma que justifique estes acasos como simples coincidências. Serão? Depois de me saturar com tanta mensagem que não identificava, resolvi esclarecer todo este imbróglio com o António: “sim, sou esse todo”, era o António do rio. Marcámos um encontro para tomar café e passar a pente fino as lembranças.
Maria, eu própria Maria de ontem e Maria de hoje assim assim, tendo em conta que apenas reconheces de mim essas saudades, e antes que seja tarde demais, aqui te formulo o convite para tomar um café, num dia de verão, pois sabes, já aqui to mencionei, ando sempre atrás do sol ainda que ele fuja de mim, e no verão é mais fácil encontrá-lo à mão de semear.
Bernardete Costa
III POEMA
Estou cansada do voo insurreto
das palavras.
Deixa-me descansar um pouco, adormecer
no ilusório afago dessa névoa
que me trazes.
Busco em ti o sossego para a revolta
ardente do verde,
do cálido da memória,
da louca correria sobre o infinito das estradas,
da embriaguez com que me fazes beber
a poalha da tua maresia,
do pó e oiro com que me aconchegas
e, sobretudo, desse refluxo de música
com que embalas o meu sono
e ternamente me encaminhas para o mundo.
Adormeço em ti e busco-te no bálsamo
que há de fazer renascer o meu corpo.
Renasço para a história de sermos,
ainda e sempre,
a inábil glória de mutuamente
nos proclamarmos imortais.
In Lugares do Tempo, Bernardete Costa